YOGA, A MENTE E O DESPERTAR DO VERDADEIRO “EU”

Por Pedro Kupfer

vṛttisārūpyam itaratra || 4 ||
De outra maneira, existe
identificação com os vṛttis.

vṛtti= propensões ou movimentos psicomentais (sentidos)
sārūpyam = identificação, conformidade, concordância, similariedade
itaratra = de outra maneira

Este sūtra e o anterior formam um par complementar. Enquanto, no terceiro sūtra, explica-se o que acontece no Yoga, que é reposar na sua própria natureza, neste quarto sūtra descreve-se o que acontece fora de harmonia com essa natureza essencial. E o que acontece fora do Yoga é que a pessoa, ao não relaxar nela mesma, fica fora de sintonia com seu coração, por um lado, e com o mundo por outro lado.

A maneira em que este sūtra está construído nos permite perceber que Patañjali aprofunda aqui a definição de Yoga dada no segundo sūtra. Aqui, ele usa a palavra sārupyam, que significa “identificacão”, para deixar claro que nirodhaḥ não é “parar de pensar”, mas interromper a identificação com pensamentos, crenças, medos, condicionamentos e sentimentos.

Hoje sabemos que existem aspectos da personalidade, como o temperamento, que são mais ou menos inatos e imutáveis. No entanto, mesmo se não pudermos mudar o nosso temperamento, podemos sim mudar a maneira em que nos relacionamos com ele. Para isso, é importante aprendermos a viver conscientemente, em Yoga.

Estar em Yoga significa estar livre de distrações. Uma mente livre de distrações nos alivia do medo, da raiva e das outras emoções indesejáveis que nos tiram a paz interior. Ser yogi significa ser mais forte do que suas próprias fraquezas, significa saber dizer não a crenças e condicionamentos.

Yoga é uma arte: a arte da desaprendizagem. O yogi não quer aprender nada novo mas compreender aquilo que já está aí para ser compreendido: o Ser, o Si Mesmo. Quer, também, livrar-se do que está sobrando.

Quer enxergar para além da identificação com os vṛttis (sentidos), que nos impede de enxergar o real. O caminho do Yoga pode ser comparado ao processo que o escultor faz para chegar à obra de arte: com seu cinzel, ele só retira o que está sobrando para que a rocha revele a obra de arte que já está potencialmente contida nela.

Esse processo de “tirar o que está sobrando” tem como objetivo neutralizar a identificação com os vṛttis, fundamental para a compreensão de si mesmo.

Puruṣa, também chamado no Yogasūtra de Ātma, é o Ser, ilimitado e invariável. Esse Puruṣa não é afetado pelas dualidades, nem por pensamentos ou emoções. Ele é o sujeito, intrinsecamente livre, autoevidente e invariável, que por sua vez dá lugar às variedades de experiências. Sendo o sujeito que tudo observa e testemunha, não pode ser por sua vez objeto de observação.

Essa é a razão pela qual Patañjali também aponta para o Ser através da palavra sākṣi, que significa testemunha. A confusão existencial acontece quando o Ser é confundido com o ego. Sobre a identificação entre o Ser e a psiquê diz o Dṛkdṛśyavivekaḥ, um importante texto de Vedānta:

“Devido à superimposição, o indivídu acredita ser o experienciador. Essa confusão entre sujeito e objeto fica esclarecida com a remoção do véu da equivocação”. 17.

Como já vimos anteriormente, a compreensão da diferença entre o Ser e o psiquismo é essencial no processo do Yoga. Vācaspati Miśra, autor que comentou o Yogasūtra e o Yogabhāśya de Vyāsa no século IX d.C., explica a aparente atividade de Puruṣa e sua identificação com o intelecto através da seguinte metáfora:

“Assim como a lua cheia, imóvel e circular no céu parece estar em movimento ao refletir-se na água corrente, da mesma maneira Puruṣa, sem nenhuma atividade ou apego de sua parte, parece realizar atividades ou apegar-se [aos objetos] em função do seu reflexo no intelecto (buddhi)” (Tattva Vaiśāradi,IV:22).

Nesta analogia, Vācaspati Miśra compara Puruṣa à lua cheia e buddhi, o intelecto, que é o princípio individual mais refinado, ao reflexo da lua na água em movimento. Embora Puruṣa aparente ter movimento próprio, permanece, de fato, imóvel.

A aparente identidade entre o Ser e a psiquê fica estabelecida em função do poder de ocultação de avidyā, a ignorância. É essa falsa identidade que produz conteúdos, como “eu sinto tal coisa”, “eu sou tal coisa” ou “eu faço tal coisa”.

Quem sente, em verdade, não é Puruṣa, mas a mente, cujos pensamentos se refletem no corpo sob a forma das emoções. Quem acredita ser ou fazer alguma coisa é o ego (ahaṅkāra), atribuindo o mérito ou a referência a si próprio.

Em suma, este sūtra nos ensina que os vṛttis precisam pacificarse para que o Yoga possa ser vivido e para que Puruṣa possa ser conhecido. Isso implica uma transformação sistemática de citta, o complexo mente-personalidade, que oscila constantemente entre os estados de consciência, vigília, sonho e sono.

Os tipos de modificação (vṛtti) que dão corpo à vida psíquica são os seguintes:

1. conhecimento correto;
2. conhecimento errôneo;
3. fantasia;
4. sono;
5. memória.

Vejamos brevemente em que consistem estes cinco tipos de vṛttisPramāna significa “medida” ou “padrão” e, aqui, define o conhecimento válido. É o que aprendemos ao percebermos as coisas por nós mesmos, através da percepção ou da dedução, ou ainda pelo testemunho de outrem.

Viparyāya em sânscrito é “erro” e designa o vṛtti em que a percepção não coincide com a realidade. OYogabhāśya (II:3) afirma que viparyaya e avidyā (ignorância) são sinônimos.

Vikalpa quer dizer literalmente “conceitualização”, mas aqui é traduzido como “imaginação”, “devaneio” ou “fantasia”. Define o estado em que surgem construções mentais que não têm base real. Nidrā significa “sono” (sem sonhos). Este termo descreve aparentemente a atividade suspensa que acontece em estado de sono. Smṛti é “memória” e deriva da palavra smṛ, que significa “recordar”.

Neste contexto, smṛti designa as coisas ou experiências lembradas. Porém, dentro do Yogasūtra, existe ainda outro significado para este termo: no sūtra I:20, smṛti designa o estado de plena atenção, que precede e é necessário para se alcançar o samādhi.

Estes cinco tipos de atividade psicomental permeiam os três estados de consciência – vigília, sono e sonho – e dão lugar, por sua vez, a manifestações como desejos, apego, aversão, felicidade, sofrimento e toda a miríade de sentimentos e pensamentos que configuram a vida psicomental.

A psiquê (citta), por sua vez, é a faculdade interna que percebe, analisa e processa as impressões sensoriais, juntamente com os estímulos subconscientes. Esses estímulos, chamados em sânscrito saṁskāras, são as marcas sutis, porém indeléveis, que as diferentes experiências de vida, conscientes ou não, deixam na mente subconsciente. Saṁskāra significa literalmente “ativador”.

Este termo sugere que as impressões subconscientes não são apenas resquícios inertes de pensamentos e ações passados, mas são forças ativas que continuam determinando os conteúdos da vida psíquica, impelindo continuamente a consciência para assumir novas formas que, por sua vez, darão lugar a novas ações.

Os cinco tipos de vṛttis mencionados neste sūtra são as maneiras com que essas tendências subconscientes dão corpo à vida psíquica.

Fonte: http://www.yoga.pro.br/openarticle?id=1193&section=2&subsection=3022&Yoga-Problema-Solu%C3%A7%C3%A3o

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